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SINOPSE: LiLiCo, uma modelo de sucesso e personalidade da televisão, parece ter tudo que sonhou, até um antigo segredo ameaçar sua carreira. Ela vive um pesadelo ao tentar desesperadamente preservar sua imagem perfeita.

“Seremos esquecidas. Somos máquinas processadoras de desejos”

A protagonista de “Helter Skelter”, Lilico (Erika Sawajiri), é uma supermodelo que é praticamente a representação em pessoa de um ideal de beleza, construída integralmente por cirurgias plásticas ilegais – um corpo e rosto feitos de retalhos de outras vidas, uma espécie de Frankenstein dos padrões estéticos. Ela é a própria personificação da fragilidade do ídolo na sociedade, cuja validade está completamente ligada à sua manutenção. A beleza, para Lilico, é um fardo, uma máscara que, ao ser permanentemente (e literalmente) costurada na carne, esconde a ausência de um eu autêntico. E é justamente por conta dessa monstruosidade proposta que o filme me conquista tanto, e um dos motivos para trazer um texto sobre ele agora no mês do halloween, o “mês do terror”.

Na parte técnica, é impossível não destacar o uso extravagante e saturado das cores — que me remete muito a filmes que eu adoro, como Anti Porno de Sion Sono — e a cinematografia pop e caótica da diretora Mika Ninagawa (que também é fotógrafa, o que ajuda a explicar muito da beleza estética do filme), estes elementos funcionam como um espelho da própria mente de Lilico: um turbilhão de luxo, glamour e desespero. Cenários como o estúdio de fotografia, o backstage e o apartamento da modelo são onde a vida é uma performance sem fim, como se estivesse constantemente atuando a própria vida, tudo rumando a seu inevitável declínio.

O filme se estabelece como essa crítica muito clara à obsessão moderna pela perfeição estética, uma mensagem vinda de 2012 mas que não poderia permanecer mais atual. A beleza de Lilico não é um dom ou uma benção, mas uma obrigação imposta a ela, é apenas um produto que precisa de manutenção constante. Esse corpo “construído” de forma ilegal e radical não é apenas sua ferramenta de trabalho; é a sua única identidade, pois o que o filme mostra é o preço de trocar a essência pela aparência.

A tragédia de Lilico está na sua crença de que a dita perfeição externa é a sua chave para a felicidade e o poder. No entanto, quanto mais perfeita se torna sua imagem pública, mais ela se desfaz por dentro, mais infeliz e miserável é sua vida. E então levantam o questionamento: o que acontece com a alma quando o corpo é tratado apenas como um objeto que precisa ser “consertado” e aprimorado sem limites?                                             A busca da personagem pela beleza absoluta, nesse contexto, torna-se uma doença, as cirurgias são viciantes e dolorosas, e a modelo vive com a ameaça constante de que seu corpo não suporte mais os procedimentos, que o tecido artificial comece a se decompor, que ela fique “feia”. Esse é o verdadeiro horror: o corpo perfeito é, na verdade, apenas uma bomba-relógio de carne humana.

A entrada em cena de Kozue (Kiko Mizuhara), uma modelo jovem e com uma suposta “beleza natural”, é o gatilho para o colapso mental de Lilico. Ela representa a ameaça da substituição, a prova de que seu esforço extremo para manter-se no topo é inútil. O preço e as consequências da beleza são cruéis: sempre haverá uma versão mais nova e menos “custosa” para ocupar o seu lugar, mensagem essa que não é nova, e filmes recentes como “A Substância” (que eu acho fenomenal) também trabalham ela, mas a forma com que Helter Skelter desenvolve este aspecto é muito interessante.

É nesse ponto que a mensagem do filme se torna mais clara ainda: ele aborda a efemeridade do ídolo. A validação de Lilico depende inteiramente dos olhares externos e dos flashes da câmera, que confirmam sua existência e seu valor. Quando essa atenção começa a se desviar, quando seu amante não a trata mais como sua prioridade, e, especialmente, quando as capas de revista dão espaço a rostos mais jovens como o de Kozue, a realidade cuidadosamente construída por (e para) Lilico desmorona. Essa perda de foco e de status a leva a atos de manipulação e crueldade cada vez mais desesperados, não apenas contra seus rivais, mas contra aqueles que a apoiam, tudo na tentativa doentia de recuperar o controle de sua própria narrativa e, mais importante, de sua própria relevância.

O relacionamento profundamente abusivo e parasita com a sua gerente, a quem Lilico chama de “Mãe”, e o cenário ainda mais sombrio da exploração de jovens vulneráveis para o tráfico de órgãos que alimenta a clínica de cirurgias plásticas ilegais, mostram que a obsessão pela beleza está ligada a um sistema de exploração e corrupção podre e criminoso naquele mundo. Lilico é portanto, em um nível pessoal, uma vítima de um padrão estético doentio imposto pela indústria e pela sociedade, mas ela também se torna a executora ativa da crueldade que esse mesmo sistema exige para se manter em funcionamento. Sua dor e seu luxo são financiados pela dor e pelo sacrifício das outras. A riqueza, o luxo e o poder que Lilico conquistou são como prisões, ela não pode relaxar, não pode envelhecer, não pode falhar.

O clímax caótico e a conclusão meio contraditória da história são a resposta do filme à sua própria pergunta: o que acontece quando a beleza artificial se torna a única razão de viver? A sua resposta é a aniquilação. A implosão do “eu-imagem” impossível de se sustentar é o único caminho para a liberdade – ou para uma loucura total, parece não existir outro caminho.

Após toda a saturação visual e suas maluquices, Helter Skelter se encerra como uma mensagem brutal sobre o vazio existencial na era da imagem. O filme de Mika Ninagawa deixa de ser um drama na indústria da moda para se tornar um terror sobre a patologia do consumo de si mesmo. A trajetória de Lilico nunca é “apenas” uma história de queda; é um manifesto contra a tirania da perfeição imposta pela sociedade e pela indústria da moda, que transforma o corpo em um mero artefato descartável. A beleza deslumbrante e artificial de Lilico não é seu triunfo, mas sim a manifestação de um sistema que se alimenta de insegurança e de desintegração humana.

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