
A Longa Marcha – Caminhe ou Morra é a adaptação de um dos primeiros livros de Stephen King (publicado sob o pseudônimo Richard Bachman), e é uma trama que se utiliza de um cenário imaginário distópico que, hoje, parece mais próximo da nossa realidade do que quando o livro foi escrito. O filme narra a competição em que jovens devem caminhar sem parar, até que reste apenas um sobrevivente. A própria premissa já carrega peso meio filosófico: caminhar ou morrer, seguir ou perecer, obedecer ou enfrentar consequências que anulam qualquer possibilidade de resistência. Essa simplicidade de estrutura, no entanto, não significa que o filme seja raso em seus comentários ou algo do tipo, pelo contrário, é essa simplicidade estrutural que permite o filme trabalhar diversos assuntos de uma forma tão natural.
O longa é, antes de tudo, uma crítica sobre a normalização da violência como espetáculo. A marcha é ritual, é televisionada, é acompanhada por militares e cidadãos, quase como um reality show. Não se trata de uma punição, mas de um evento institucionalizado, um instrumento de poder. Aqui, o filme dialoga diretamente com Michel Foucault e sua noção de biopoder: a regulação dos corpos e a administração da morte como forma de manter o controle social. A violência, mais do que um ato de destruição, torna-se dispositivo de governo. Cada passo dado pelos jovens acaba representando o peso de uma sociedade que naturaliza o sofrimento como se fosse entretenimento ou um tipo de sacrifício necessário.
O caminhar interminável, sob a iminência da morte, também reflete a condição humana diante do absurdo. Como em Camus (citado diretamente algumas vezes), a vida é uma marcha sem garantias, na qual a liberdade reside não em escolher os limites, mas em decidir como reagir a eles. Cada competidor, mesmo preso a regras inescapáveis, ainda pode escolher entre resistir, desistir, solidarizar-se ou trair os outros. O filme se torna, então, uma parábola sobre autonomia e dignidade em meio a contextos que parecem eliminá-las.
Há ainda um mérito na ambientação que mistura diversas épocas. Elementos visuais dos anos 70 convivem com tecnologias mais atuais, criando uma sensação de deslocamento temporal que reforça a ideia de que a distopia não pertence a um “futuro distante”, mas a qualquer tempo, inclusive o nosso. O resultado é uma estética opressiva, que remete inclusive a Jogos Vorazes, que é do mesmo diretor, aqui se tem também uma fotografia que valoriza o vazio da estrada, o cansaço dos corpos, o peso de paisagens infinitas, que parecem se repetir incontáveis vezes. A repetição de passos, os silêncios longos e os ruídos mecânicos reforçam também o desgaste emocional do espectador, convidado a sentir a exaustão junto aos personagens, o que pode (ou não) tornar a experiência muito maçante para quem está vendo, mas felizmente eu consegui embarcar nessa jornada.
No entanto, é justamente dentro desse ambiente cruel que surgem brechas de humanidade. A amizade e a solidariedade entre alguns competidores oferecem contraste à brutalidade do sistema. Seja com o protagonista Raymond Garraty vivido por Cooper Hoffman, que carrega em si um desejo muito pessoal para além da compensação financeira que é um dos “prêmios” após experiência, ou com Peter McVries, vivido por David Jonsson, que é o exemplo mais claro quanto a humanidade: seu espírito de esperança lembra que a identidade humana não se resume à dor ou ao espetáculo da morte. Essas pequenas alianças e afetos tornam o filme mais do que um relato de crueldade, tornam ele mais humano.
O Major, interpretado por Mark Hamill, encarna a face mais explícita da autoridade. Sua frieza diante das execuções, fazem dele uma alegoria do poder que se sustenta pelo cinismo. Ele não representa um homem isolado, tanto que pouco tem personalidade própria, mas um sistema de discursos que manipula conceitos como honra, coragem e patriotismo para justificar o inaceitável. O antagonista não é apenas cruel: ele é como um operário maléfico, necessário para que o regime siga de pé, e por isso se torna de certa forma, perturbador.
É nesse ponto que a crítica política contemporânea se torna inevitável. Embora adaptado de um romance antigo (mais precisamente do final dos anos 70), o filme ressoa muito bem com a cultura atual do espetáculo, do consumo da dor alheia como entretenimento, da vigilância permanente, do autoritarismo que se disfarça de disciplina e mérito. A marcha poderia ser realmente um reality show, poderia ser uma tradição militar, poderia ser metáfora de uma sociedade que consome seus jovens em nome de promessas vazias. E é por isso que funciona tão bem, é algo muito plausível muito relacionável.
Ainda assim, não é um filme que considero isento de problemas. O filme por se tratar “apenas” de pessoas andando, se torna repetitivo em certo ponto, e alguns personagens secundários soam mais como arquétipos do que como indivíduos, mesmo que a maioria funcione bem. E apesar da questão da repetição, o impacto do filme permanece, justamente porque a sensação de desgaste é parte integrante da experiência: a marcha não deve ser confortável, nem para os personagens, nem para o espectador.
O tema central que acaba emergindo é o valor da vida diante da morte iminente. Quando cada passo pode ser o último, cada gesto ganha uma densidade trágica. Como na tragédia grega, a morte não é surpresa, mas destino conhecido, inevitável. O que resta é observar como cada um reage: com dignidade, desespero, egoísmo ou compaixão, e isso é bem bonito. A filosofia do filme é a do sacrifício, não como escolha plena, mas como imposição que revela o que há de humano ou desumano em cada participante.
E é também neste contexto super opressor, que o elenco se mostra um dos grandes trunfos do filme. Cooper Hoffman entrega ao protagonista uma mistura de fragilidade e obstinação, ele é o motor do filme e nossa entrada a este mundo. David Jonsson também brilha como McVries, trazendo leveza e esperança em meio ao horror. Mark Hamill, ainda que às vezes exagerado, dá ao Major a imponência necessária para que ele seja símbolo do poder absoluto. E o grupo de jovens atores, entre eles Tut Nyuot, Ben Wang e Charlie Plummer, cria uma coletividade muito agradável, todos funcionam muito bem, mas a maior. O filme certamente não teria a mesma força se não fosse pelo elenco comprometido em carregar fisicamente e emocionalmente o peso da história.
Ao fim, A Longa Marcha é menos sobre quem vence a competição e mais sobre o que significa caminhar em um mundo que nos obriga a seguir regras cruéis para sobreviver. É um filme que nos devolve perguntas sobre até que ponto aceitamos a violência como espetáculo, sobre a fragilidade da liberdade quando o poder regula até nossos passos, e sobre a persistência da humanidade em meio ao absurdo.

Formado em gestão de turismo & cinema, Jojo (João) é um dos criadores da Toca Cinéfila, e seu filme favorito é “Labirinto do Fauno”.