Sinopse: Os detetives Judy Hopps e Nick Wilde se encontram na trilha sinuosa de um réptil misterioso que vira de cabeça para baixo a metrópole de mamíferos, Zootopia.

“Eu não me importo que somos diferentes. O que me importa é você.”
A Disney se colocou ao meu ver, em uma posição muito difícil ao decidir voltar a Zootopia, a metrópole antropomórfica que, em 2016, se tornou um dos grandes sucessos do estúdio, um filme que não era apenas técnicamente brilhante, mas uma bela alegoria sobre preconceito, assimilação e o peso de estereótipos sociais. A questão que pairava sobre esta sequência era se ela conseguiria fugir da armadilha da repetição e aprofundar o universo sem trair sua base ideológica, era difícil voltar a esse mundo justamente pelo quão rico ele se apresentou em 2016, e é muito comum as sequências da Disney simplesmente não darem certo. Acontece que Zootopia 2 é um sólido e bem-sucedido “tiro” da Disney: o filme não busca superar o original apenas em escopo, mas sim na maturidade que trabalha certos assuntos, e não que supere seu antecessor, mas não mancha de forma alguma sua imagem.
Meu interesse em Zootopia reside menos em seus personagens (fofos, carismáticos e bem trabalhados, logo falo deles) e mais na arquitetura da cidade, na criação de mundo, a cidade em si é uma personagem muito interessante, ela é a promessa de coexistência entre espécies, mas ao mesmo tempo que é um mundo que vende essa utopia, esconde segredos sujos. Nesta continuação, somos convidados a retornar a essa complexa malha urbana com um olhar menos maravilhado e mais observador, notando as manchas que aparecem sob uma superfície tão bonitinha. O tema central migra da introdução da utopia para a luta de sua manutenção, confrontando a ideia de que a harmonia não é um estado, mas um esforço contínuo.

A coelha Judy Hopps, agora uma figura com certo respeito de seu chefe (chefe Bogo) na força policial após o caso do primeiro filme, é confrontada com um tipo de preconceito mais sutil, um preconceito que se disfarça de burocracia institucional – além do clássico preconceito por ela e seu parceiro serem tão diferentes. Seu otimismo e sua urgência em provar o valor de sua parceria a levam a desobedecer ordens quase que de forma constante, mostrando uma falha de comunicação que é mais sobre insegurança do que sobre sua insubordinação. A luta da coelhinha Judy, aqui, é sobre aceitar que a justiça se constrói passo a passo, e nem todas as batalhas podem ser vencidas na base da pura e acelerada boa vontade, ou como o chefe Bogo menciona – nem todo caso é para salvar o mundo.
Já o Nick, a raposa, segue tendo aquele seu charme mais contido, ele não gosta de verbalizar o que sente, pelo contrário, ele passa a maior parte da narrativa reprimindo seus desejos justamente por ele não ter tido um tipo de criação que o incentivasse a dizer o que sente. É sempre bonito ver como usam o Nick para mostrar que podemos ser diferentes daquilo que fomos criados para ser, o envolto do personagem pode até ser previsível, mas isso não o torna ruim.
Mas o coração do filme é justamente a dinâmica entre Judy e Nick, seus protagonistas, aqui eles ganham uma nova camada de complexidade deliciosamente humana – ou seria, neste caso, animal. Impossível não destacar alguns comoventes diálogos entre eles, permitindo que a amizade estabelecida seja testada por diferenças de visão e método, em vez de se apoiar em clichês românticos (e mesmo quando vai para eles, é muito bonitinho). É na química da dupla, na maneira como a energia de Judy ancora o cinismo de Nick, que o filme encontra seus grandes pontos fortes

O novo mistério se centra na busca por um livro que guarda os segredos e, mais crucialmente, os planos das paredes climáticas de Zootopia. É então que surge o réptil Gary De’Snake, que busca provar a inocência de sua família e o erro fundacional da cidade, que de acordo com ele, teria sido fundada sobre mentiras que acabaram excluindo os répteis de Zootopia. A trama se transforma então mais uma vez em uma investigação sobre a genealogia do preconceito, onde a motivação do “antagonista” não é ter poder ou algo do tipo, mas uma consequência do abandono e da exclusão.
Na parte técnica, a animação da Disney atinge um patamar de excelência que poucos filmes alcançaram até então. A evolução visual é notável, especialmente nas cenas de ação aceleradas, nas perseguições eletrizantes – como a que se dá através de tubos d’água ou na perseguição de carro no começo do filme – e no tratamento de luz, água e textura dos pelos. A quantidade de personagens em tela é impressionante, e o design de produção consegue expandir a cidade com a adição de novos biomas (como pântanos e desertos) de forma deslumbrante, é um mundo muito vivo, o que demanda um nível de comprometimento absurdo dos artistas envolvidos – e é muito bonito que ao final do filme, exista (além das menções nos créditos), uma pequena homenagem a todos os trabalhadores que ali atuaram na parte criativa.
O ritmo é cuidadosamente cadenciado, permitindo que as pausas dramáticas respirem, mas o humor é constante e bem afiado, perfeito para funcionar tanto com crianças quanto adultos. O roteiro é generoso em “piscadelas” para os adultos, recheado de trocadilhos hilários e até referências diretas ao cinema “mais adulto” – há momentos que remetem a clássicos como O Iluminado e O Silêncio dos Inocentes. Um bom filme familiar da Disney: oferecem mensagens diretas às crianças e complexidade satírica aos pais (ou quem mais quiser ver, não se limitem a não consumir algo por algum preconceito com o gênero).
E apesar de existir sim algumas mensagens óbvias, o filme se recusa a ser panfletário. O comentário social é inserido nas atitudes e nas pequenas piadas, nunca em discursos pesados, mas não por isso são menos funcionais. A lição de moral reside na ação da dupla, na forma como eles precisam confrontar seus próprios pontos cegos e preconceitos internalizados em relação a novas espécies.
Zootopia 2 é uma sequência que respeita o original e abraça o futuro que a franquia pode vir a ter, conta com uma expansão de mundo incrível e mesmo que tenha um pouco menos de charme que seu antecessor, entrega uma aventura que equilibra emoção e comédia na dose certa. A busca pela harmonia aqui vem do reconhecimento que a união não acontece magicamente, mas sim pelo esforço consciente e constante de ouvir o outro e enfrentar seus próprios demônios. Depois de alguns anos, talvez tenha chegado a hora da Disney levar mais um Oscar de animação para casa, especialmente em um ano tão morno para as animações.

Formado em gestão de turismo & cinema, Jojo (João) é um dos criadores da Toca Cinéfila, e seu filme favorito é “Labirinto do Fauno”.