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Não é apenas um thriller político que Kleber Mendonça Filho constrói em O Agente Secreto, tampouco uma narrativa de espionagem como tantas outras como o título sugere. É sobretudo um mergulho naquilo que o tempo não apaga: os silêncios que sobrevivem à repressão, as marcas deixadas pelo afastamento, os laços que se esgarçam mas permanecem pulsando de algum modo. Recife, em 1977, não é cenário de fundo: é um corpo vivo (e nisso entra muito o mérito da direção de arte que irei elogiar mais adiante), respirando junto com Marcelo, esse homem interpretado com uma estranheza necessária por Wagner Moura, naquela que talvez possa vir a ser a performance mais marcante de sua carreira, não por grandes momentos dramáticos, mas por suas sutilezas.

O protagonista retorna à sua cidade como quem nunca voltou por completo. Marcelo (Wagner Moura) é estrangeiro em sua própria terra, alguém que caminha por ruas familiares mas as olha com olhos de um forasteiro. A “missão” que o acompanha importa menos que o peso dos anos ausentes, das memórias que resistem mesmo quando se deseja esquecê-las, o que ele deseja de certa forma compensar, principalmente com seu filho. A espionagem, nesse sentido, é apenas superfície; o verdadeiro enigma está na intimidade fragmentada, naquilo que se perdeu entre pai e filho, entre marido e mulher, entre homem e cidade, entre sujeito e história.

E o que o traz de volta a Recife não é apenas um desejo de reencontro, mas a necessidade de se esconder. Em São Paulo, Marcelo se torna alvo de vigilância, perseguido por um estado que reduz sua vida à acusação de ser “subversivo”, um rótulo que sufocava existências inteiras durante a ditadura — presença que paira sobre o filme como sombra, sem se tornar foco direto, diferente de obras como Ainda Estou Aqui. A fuga, no entanto, não garante alívio: em Recife, o refúgio só é possível graças a braços que ainda se dispõem a acolhê-lo. É nesse gesto que surge a personagem de Tânia Maria, oferecendo abrigo e humanidade onde todo o resto parece virar as costas para Marcelo.

É impossível não destacar a delicadeza com que Tânia Maria constrói sua personagem, feita de força e de uma humanidade que vibra mesmo nos instantes mais breves, sua presença é sempre hilária, ela acaba trazendo o alívio que o filme precisa com um humor bem brasileiro e extremamente eficiente, chegou a me remeter a minha vó, o que acaba trazendo uma camada de conexão ainda mais forte. Da mesma forma, Carlos Francisco entrega uma presença firme e calorosa, oferecendo uma contrapartida à solidão de Marcelo. Existe uma conexão entre os dois, e tem um momento após uma história contada por Marcelo, que a reação de Carlos me deixou sem chão, ele consegue transmitir (mais uma vez) todo o amor e orgulho que um pai pode sentir. Ambos ajudam a expandir o filme para além do protagonista. Estão facilmente entre minhas atuações favoritas do ano, e gostaria de destacar isso pois mesmo que seja Wagner Moura quem deva aparecer pelas premiações, ele está longe de ser o único grande talento aqui.

E se existe um centro neste filme, ele não é político, mas afetivo. A família, partida e quase irreconhecível, torna-se o território onde se joga o drama maior: o de tentar restituir um gesto de afeto onde já só restam cicatrizes. Não há sentimentalismo; Kleber prefere o que não é dito, o que se insinua em olhares desviados, na incapacidade de tocar sem ferir. É nessa economia dos gestos que o filme se torna doloroso, porque reconhecemos ali o terreno minado que cada relação pode ser quando atravessada pela violência do mundo.

Nesse contexto de mundo arrasado, que a direção de arte, que mencionei logo no início, brilha. Ela não se contenta em vestir personagens ou alinhar objetos: ela impregna o filme de uma densidade que é quase tátil. Cada parede descascada, cada cartaz de época colado com descuido, cada lâmpada amarelada parece carregar o peso de um país suspenso entre o medo e a rotina. É como se o tempo tivesse se sedimentado nos espaços, e Kleber soubesse filmar justamente essa camada invisível de memória que escorre pelas superfícies.

Recife, então, não aparece como cenário reconstituído, mas como lugar habitado, e por consequência, ferido. Os interiores domésticos guardam uma intimidade gasta, marcada pela ausência de quem partiu e pelo silêncio de quem ficou. As ruas, respiram junto com Marcelo, cercando-o, lembrando-o o tempo todo de que o passado não é uma lembrança distante, mas algo que se infiltra em cada fresta. O mérito da direção de arte é justamente esse: dar corpo ao que sobrevive, mesmo quando a vida parece querer seguir adiante, e nisso eu relembro de uma cena próximo do fim com a dona Sebastiana contando um pouco de seu passado, uma cena bonita e muito engraçada ao mesmo tempo, talvez minha sequência favorita do filme.

Não gosto de tudo: o filme tem personagens demais, e nem todos contribuem de fato para a narrativa, que é o caso do papel de Udo Kier, que me parece um personagem muito solto com intenção apenas de fazer um paralelo. Algumas passagens que trabalham com a noção de tempo, tentando conectar tudo aos dias de hoje também não me agradam, mesmo que exista uma conexão e propósito para essa “subtrama”. Ainda assim, de forma geral, O Agente Secreto é um dos filmes mais maduros de Kleber Mendonça Filho, reunindo muita inspiração em Carpenter, Spielberg e Tarantino, mas com uma identidade profundamente brasileira, o que o torna revigorante e único.

E falando de Spielberg, em muitos momentos, O Agente Secreto lembra (e faz citações diretas) de maneira inesperada, a tensão silenciosa de Tubarão: não pelo monstro visível, mas pelo medo constante que paira sobre o protagonista e o ambiente ao seu redor. Assim como Spielberg transformava a água em ameaça invisível, Kleber transforma Recife e o passado de Marcelo em algo quase predatório. O suspense não está na ação explícita, mas na sensação de que algo pode surgir a qualquer instante, moldando decisões, relações e a própria sobrevivência do personagem. É essa presença invisível, mas palpável, que faz do filme um thriller tão inquietante quanto íntimo.

Ao sair da sessão (consegui assistir graças a uma sessão antecipada em Curitiba realizada no Cine Passeio), a sensação era de que O Agente Secreto não se encerra na tela. Ele continua ecoando na lembrança do espectador, como se cada um carregasse consigo uma missão secreta: a de não permitir que as histórias pessoais se separem das coletivas, que a memória íntima se desvincule da memória histórica. Porque, no fim, o filme parece dizer que somos feitos dessa tensão: entre o que lembramos e o que tentamos apagar, entre os vínculos que o tempo desfaz e aqueles que resistem apesar de tudo. E talvez aí resida a grande beleza do filme: ele nos lembra que o ato de recordar não é apenas pessoal, mas político, e que mesmo na escuridão de uma sala de cinema, o passado insiste em respirar através de nós.

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